Funcionários e ex-fiéis contam o que acontece em seita investigada pela PF

Polícia Federal prendeu um pastor acusado de manter os fiéis como trabalhadores escravos, enquanto os dirigentes da igreja são investigados por negócios milionários. O nome é "Comunidade Evangélica Jesus, a Verdade que Marca". Confira os relatos de ex-fiéis que escaparam da seita.


“Eu estava sendo aniquilado perante o país. Perante a nação evangélica. E perante a própria igreja”, disse o pastor Cícero em um vídeo.
O pastor Cícero Vicente de Araújo foi preso esta semana pela Polícia Federal, com mais cinco pessoas. No vídeo, até este domingo (23) inédito, gravado em São Paulo em 2008, o pastor reclama das primeiras investigações sobre a igreja que ele fundou.
“Eu estava sendo exterminado, meus irmãos. Esta é a palavra certa”, disse o pastor, rindo.
Faz tempo que o Ministério Público do Trabalho e a Polícia Federal investigam o pastor.
“Todo mundo disse: Agora, o Araújo e a igreja dele acabou”, afirmou o pastor no vídeo.
Mas só agora descobriram como funciona a igreja dele, chamada Comunidade Evangélica Jesus a Verdade que Marca, e o que está por trás dela.
Depois que começou a ser investigada, a comunidade fechou quase todos os locais de culto. Sobrou um, em São Paulo.
As investigações mostram que muitas pessoas que foram até lá atraídas pelas promessas de paz espiritual caíram, na verdade, numa armadilha. Perderam tudo que tinham, foram afastadas das famílias e até submetidas a trabalho escravo.
“Então elas são trazidas até o templo e são convencidas a adentrarem em uma seita onde haveria o desapego aos bens materiais”, contou o delegado Polícia Federal de Varginha João Carlos Girotto.
Um homem diz que ficou dez anos na igreja.
“Você acaba acreditando que realmente tem que fazer isso logo porque o mundo vai acabar”, explicou o ex-fiel.
Além de doar tudo o que tinha à igreja, o homem conta que ainda pediu ajuda à mãe. Fez com que ela fosse ao banco. “Ela foi lá, tirou empréstimo de R$ 60 mil”, contou.
Segundo ex-fiéis, é uma história que se repete.
Ex-fiel: Eu vendi meu terreno. Na época foi R$ 7.900. Eu doei para a igreja o meu tempo de serviço também, que eu tive na empresa que eu trabalhei.
Fantástico: O seu FGTS?
Ex-fiel: Isso.
Fantástico: Quanto que o senhor doou?
Ex-fiel: Na época foi R$ 5 mil.

Segundo a Polícia Federal, São Paulo era o centro de recrutamento da seita. Depois de doarem casas ou apartamentos, muitos fiéis passaram a viver em alojamentos da própria comunidade.
Um ex-fiel diz que os alojamentos eram horríveis. “Tinha a parte da oficina, a parte do refeitório que nunca existiu e os ratos que andavam pra lá e pra cá. A gente dava veneno pro rato, pra exterminar o rato pra gente poder dormir”, lembrou.
Estima-se que a comunidade tenha seis mil fiéis em pelo menos três estados: São Paulo, Minas e Bahia.
Para um psiquiatra, essas pessoas têm uma coisa em comum.
“São aquelas pessoas que estão esperando por milagres. Quando a pessoa busca isso, ela tem certeza absoluta que o outro lado é capaz de realizar o desejo, de suprir aquela necessidade, de realizar aquele milagre que ela busca, por isso ela se entrega piamente”, disse Antônio Geraldo da Silva, presidente da Associação Brasileira de Psiquiatria.
“Essa é a visão que os irmãos têm, que o pastor faz tudo certinho, e a perseguição da Polícia Federal em cima do pastor é o diabo. É o diabo usando a Polícia Federal”, conta um ex-fiel.
De doação em doação, os negócios por trás da seita viraram um império. Segundo a PF, o pastor, usando laranjas, tem negócios em dez cidades mineiras e seis baianas. São 12 fazendas e 35 estabelecimentos comerciais. Valor estimado pela investigação: R$ 100 milhões.
Uma das fazendas da seita está em São Vicente de Minas. De acordo com as investigações, a produção de frutas e verduras das fazendas abastece os restaurantes do grupo nas cidades.
Para a PF, tudo na base do trabalho escravo. Os fiéis eram iludidos pela promessa de uma vida tranquila longe de São Paulo.
“Eu achava que estava um bem pra minha família. E achava que ia viver num lugar melhor”, afirmou um ex-fiel.
E assim, segundo as investigações, foi se formando a mão de obra escrava em Minas e na Bahia. Com aparência de legalidade.
“Essas fazendas são constituídas sob a forma de associação. Formalmente, aquilo é uma associação. Não haveria necessidade do vínculo empregatício”, explicou o delgado João Carlos Girotto.
Por conta de eventuais fiscalizações, nas lojas e nos restaurantes o esquema era outro, diz um ex-fiel. “A gente foi no contador lá e assinou rapidinho a carteira e devolveu só que a gente trabalhava, trabalhava. A gente não recebia nada”.
“Minha filha é superdoente, levanta às três da manhã para fazer queijo e recolher verdura para venderem na cidade. E à tarde os líderes vão lá e recolhem”, contou a aposentada Waldete Ferreira da Silva.
Dona Waldete tem duas filhas, e ela diz que as duas vivem há nove anos em uma fazenda da seita.
“Minha filha aprendeu a fazer queijo, aprendeu a ser escravo deles”, disse Waldete.
“A gente só trabalhando, trabalhando, trabalhando na enxada, trabalhando no duro. E eu vendo os líderes, não só os líderes, mas como suas mulheres, seus filhos, em carros de luxo, no passeio, comendo do bom e do melhor, shopping”, afirmou outro ex-fiel.
“Se você questionar isso, o pastor já olha que você já está olhando com outros olhos. Você já não faz parte, você já não é mais ovelha”, contou um ex-fiel.
Os fiéis que vivem nessas condições não têm liberdade para falar com a família, como conta o pai de uma moça que vive há quatro anos numa das fazendas. “Fiz algumas visitas a ela, mas eu percebi que eu estava sendo monitorado o tempo todo”, afirmou.
“Eles dão telefone, sim, que você liga, mas nunca existe ninguém, ninguém atende, ninguém conhece ninguém”, contou Waldete.
“E também em caso de deslocamento de algum fiel à cidade ocorre o acompanhamento de alguém do comando da seita. Ou seja, há uma vigilância constante”, disse o delegado.
O Fantástico tentou visitar algumas fazendas, mas não teve permissão para entrar. Em uma delas, em Minduri, interior de Minas, um funcionário defendeu a comunidade.
“Aquilo que é necessário, aquilo que a gente precisa, nós temos de tudo. Aqui não tem serviço escravo”, defendeu.
Neste sábado (22), uma equipe do Fantástico foi até a sede da seita tentar falar com fiéis.
Normalmente, cultos são realizados nas noites de sábado. Mas neste o templo estava fechado. A equipe encontrou uma senhora que se apresentou como fiel. Ela defende o pastor Araújo.
“Faz 15 anos que eu estou junto, nunca vi nada de errado da parte dele”, afirmou a doceira Irani Ribeiro.
De repente, apareceu um homem ligado à seita.
Homem: Isso dá cadeia o que vocês tão fazendo. Vou chamar a polícia pra vocês.
Fantástico: Por quê? A gente está na rua perguntando...
Homem: Porque vocês estão atrapalhando um lugar de religião.
Fantástico: Mas a gente não está atrapalhando ninguém.
Homem: Está sim, senhora.

A equipe não estava em frente à sede da seita, e sim em frente ao estabelecimento que fica ao lado da igreja. Apareceram mais homens.
Homem: Vocês estão levando as pessoas ao constrangimento.
Fantástico: Não, não estou constrangendo ninguém. Eu fiz uma pergunta, ela quis responder.

Como um carro com mais homens parou pouco mais adiante, a equipe decidiu, então, ir embora. Todos os presos foram soltos na sexta-feira (21), depois de cumprida a prisão temporária.
Vão responder em liberdade por seis crimes: estelionato, falsidade ideológica, lavagem de dinheiro, organização criminosa, aliciamento de trabalhadores e trabalho escravo.
O advogado do pastor Cícero Araújo, Leonardo de Campos, disse que a comunidade é investigada desde 2005 e que até hoje a Polícia Federal e o Ministério do Trabalho não conseguiram comprovar a existência de trabalho escravo nas propriedades do grupo. O advogado nega a existência de laranjas nos negócios da comunidade.
“Ele partiu a minha vida, ele acabou com a minha vida, ele derrotou a minha vida, o Cícero”, disse Dona Waldete.
Fonte:G1

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