Igreja da Inglaterra declara guerra contra agiotas

O novo chefe da Igreja da Inglaterra espera minar o setor de empréstimos do Reino Unido com cooperativas de crédito.

O próspero setor de empréstimos do Reino Unido está com problemas com a igreja. O novo chefe da Igreja da Inglaterra, um veterano que trabalhou 11 anos na indústria do petróleo, espera minar o setor, criando laços com cooperativas de crédito para oferecer melhores taxas de juros para os pobres.

A Igreja da Inglaterra transformou um ex-executivo da indústria do petróleo em seu novo líder. Ele agora pretende acalmar os conflitos entre a religião e o mundo financeiro.




A refeição de trabalho em meados de julho não foi exatamente um exemplo para a "igreja dos pobres". O menu consistia de carpaccio de peixe espada, massa com camarão, filé de atum, sobremesa gelada, frutas frescas e café. No entanto, os dois líderes da igreja, que tomaram posse com apenas dois dias de diferença um do outro, chegaram rapidamente a um acordo.

Anglicanos e católicos, disse o papa Francisco, devem dar "voz ao grito dos pobres, para que eles não sejam abandonados às leis de uma economia que parece, às vezes, tratar as pessoas como meros consumidores."

Esta declaração bem intencionada poderia também ter vindo de seu colega, o arcebispo de Canterbury, Justin Welby, que desde março é o chefe da Igreja da Inglaterra e do líder espiritual supremo de cerca de 80 milhões de anglicanos em todo o mundo. Welby, 57, trata das questões de justiça no capitalismo desde que era um estudante de teologia, e reescreveu sua tese de doutorado, transformando-a num tratado que coloca a questão: "As empresas podem pecar?"

Claro que podem. Ao contrário de seus antecessores, Welby pode buscar em sua própria experiência as respostas para perguntas como esta. Antes de iniciar sua carreira igreja, Welby trabalhou durante 11 anos como gerente financeiro na indústria do petróleo: cinco anos na Elf Aquitaine na França, seguido por seis anos em Londres e, mais recentemente, na Enterprise Oil, uma empresa de produção que agora faz parte do conglomerado Shell.

O arcebispo não hesita em dar nome aos pecadores do mundo dos negócios. Na mesma semana em que o Papa Francisco, num discurso no Rio de Janeiro, criticou o "culto ao dinheiro", Welby mirou um setor que está indo muito bem no Reino Unido, onde os salários estão caindo e os serviços sociais têm sofrido cortes: o negócio obscuro dos empréstimos "payday" [cobrados no dia do pagamento dos trabalhadores].

Credores de empréstimos "payday" como Wonga, Speedy Cash e Quick Quid estão emprestando cada vez mais pequenas quantias de dinheiro por poucos dias ou semanas a taxas de juros que, quando extrapoladas para um ano inteiro, podem ultrapassar 5.000%. Welby chama a prática de "pecaminosa" e "imoral".

Mas, ao contrário do reformista alemão Martinho Lutero, que queria ver todos os agiotas enviados à forca, Welby prega soluções de dentro do sistema. Numa reunião no final de julho com o chefe de uma das principais empresas de empréstimo de dinheiro, Errol Damelin, daWonga, Welby teria dito: "estamos tentando concorrer para que você deixe de existir".

Este é o tipo de linguagem que é compreendida no mundo financeiro de Londres. Cerca de 2 mil anos depois que Jesus expulsou os cambistas e os credores para fora do templo, o bispo Welby os está convidando a entrar.

A Igreja da Inglaterra, diz Welby, tem "16 mil filiais em 9 mil comunidades", que ele quer abrir para as cooperativas de crédito a fim de que elas possam oferecer empréstimos de curto prazo para os necessitados a taxas de juros muito mais moderadas.

Um negócio cruel

É improvável que credores inescrupulosos como a Wonga fiquem muito assustados com os banqueiros de sacristia. A fórmula para o sucesso dessas empresas controversas é que elas podem fornecer uma aprovação de crédito em poucos minutos depois de vasculhar todas as informações sobre o candidato que podem ser encontradas online.

As cooperativas de crédito não são tão rápidas. Em 2011, o setor de empréstimos "payday" emprestou o equivalente a US$ 3,3 bilhões dolares – em alguns casos, para os clientes que não podiam mais se qualificar para receber crédito nos bancos comuns. Ainda assim, menos de 10% dos mutuários deixaram de pagar os empréstimos.

Em contraste, as cooperativas de crédito britânicas, que tradicionalmente têm sido os bancos dos pobres, emprestaram apenas cerca de US$ 930 milhões para seus clientes. A maioria sofre de uma burocracia pesada e leis que limitam a taxa de juros máxima sobre empréstimos de curto prazo em 26,8%.

Embora esse número soe grande, até mesmo o bispo Welby admite que as cooperativas de crédito teriam de cobrar taxas de 70% a 80% para estes tipos de empréstimos para que os altos custos de processamento não eliminem os seus lucros.

Agora, os membros do governo de coalizão pretende examinar como eles podem "trabalhar juntos para garantir as cooperativas de crédito podem oferecer forte concorrência e uma alternativa viável para 'payday' mutuantes", disse o secretário de Estado britânico para Negócios, Inovação e Habilidades, Vince Cable.

A proposta para amarrar as cooperativas de crédito à igreja é apenas a tentativa mais recente de Welby de desarmar o conflito natural entre Deus e Mamon, a personificação da ganância no Novo Testamento, bem como de influenciar a reforma do setor bancário britânico.

Welby também foi membro da Comissão Parlamentar de Normas Bancárias, e ajudou a desenvolver suas recomendações. De acordo com essas recomendações, os banqueiros poderiam ir para a prisão por "comportamento grosseiramente negligente", e os gestores financeiros teriam de esperar até 10 anos por seus bônus para garantir de fato os mereceram.

Mas os anjos financeiros da Igreja Anglicana tampouco são infalíveis. Menos de 24 horas após a declaração de guerra de Welby contra agiotas, o Financial Times revelou que o fundo de pensão da igreja tinha uma pequena quantia de dinheiro, 75 mil libras, investida indiretamente na Wonga.

Fonte: Der Spiegel

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