Tiago Guillul: Entre a Bíblia e a guitarra eléctrica - De Portugal

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São nove e meia da manhã. A esta hora, a praia de Carcavelos pertence à meia-dúzia de surfistas privilegiados que aproveita as ondas cristalinas para agradecer a generosidade da natureza mãe. O gesto até podia ser partilhado por Tiago Guillul: o pastor da Igreja Baptista de Benfica não faz surf (por agora), mas desce a rampa de acesso à praia com um skate nos pés e uma bíblia de bolso na mão. Dez minutos de oração e um banho de mar depois está de volta ao carro. Começa assim mais um dia da semana do guru da editora FlorCaveira, que lança hoje o seu novo disco. Boa vida? "Por isso é que tento convencer as pessoas ao sacerdócio."

Na prática, o sacerdócio é a profissão de Tiago Cavaco (Guillul significa Cavaco em hebraico). Neto de um pastor evangélico baptista, assumiu a responsabilidade da igreja de Benfica há cinco anos, onde passa a maioria das tardes - depois de já ter estado nas igrejas de Queluz e Moscavide. "Faço de tudo, recebo pessoas que procuram aconselhamento, preparo o serviço de culto dos Domingos."

Apesar desta ligação à palavra de Deus, foi na música que Tiago se tornou conhecido: há cinco anos lançou uma das editoras independentes que mais curiosidade despertou no público: A FlorCaveira. E, com ela, uma série de artistas que rapidamente se impuseram no panorama de culto português: a editora foi o embrião de nomes como Os Pontos Negros, BFachada, Samuel Úria ou Diabo na Cruz, entre outros.

"Acho que não prego a palavra com a minha música, mas nunca tenho uma resposta linear a essa pergunta. Rock é rock, não vou para um concerto como vou para a igreja. Quando comecei, em 1992, os meus projectos tinham uma mensagem militantemente cristã. Hoje, gosto da mistura." Guillul chama à conversa nomes como Bob Dylan e Leonard Cohen, os "homens da música" cujos caminhos se cruzam na "fé", e fala do choque que provoca em palco, do elemento surpresa que "a fé e o mundo carnal de um concerto" podem despertar: "Tem a ver com esse lado de confronto do punk", justifica. 

Se esta ideia revela o seu lado mais rebelde, ao mesmo tempo põe a nu um conflito interior quase insanável: "É uma fraqueza minha, a música também é vaidade. E isto tem a ver com as as raízes puritanas que tenho: podia antes dizer "eh pá, pensa em coisas sérias", ou mudar quando casei. Mas a verdade é que isto tem um poder quase lúbrico sobre mim." Ainda assim, é sempre fiel aos princípios e ensinamentos evangélicos. "Como diz o meu amigo Sami [Samuel Úria]: sexo, drogas e rock'n'roll, sem o sexo pré-marital e as drogas."

Músico pastor Na praia, o telefone não pára de tocar. Em qualquer altura, Tiago até o deixaria no carro. Mas hoje pede educadamente ao jornalista para segurar no aparelho, enquanto dá um rápido mergulho no mar. "Se for a Rute atende, por favor. O Caleb pode nascer a qualquer momento." Não é por acaso que, no vidro traseiro do seu carro, está um autocolante a dizer "Família Numerosa". Aos 32 anos, Tiago Cavaco é pai de quatro filhos.

Há muito que a música e a fé se cruzaram na vida de Tiago Cavaco. Cresceu na Amadora e foi educado no seio de uma família evangélica, com imaginário povoado pelas histórias da Bíblia, "o livro mais fascinante alguma vez escrito". E se este foi elemento decisivo na sua fé, hoje é ele que chama os mais novos para "o terreno tão fértil que é a bíblia". Mas é sobretudo pela tradição musical protestante que Tiago mais cativa. "A música é vivida com muita espontaneidade, é fácil para um miúdo ver na igreja um lugar onde quer estar", conta, relembrando os tempos dos concertos/ensaios na cave da Igreja Baptista de Queluz: "Os nossos primeiros concertos eram ensaios com uma assistência de 20 miúdos aos sábados de manhã. E até dizíamos para fazerem mosh. O pastor detestava a nossa música. Mas percebia que aquilo estava a chamar muita gente para a igreja."" 


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